domingo, 23 de junho de 2013

Oportunidade para pensar as cidades

Maria Encarnação Sposito (foto), professora livre-docente de geografia urbana na Universidade Estadual Paulista (Unesp), entende que as manifestações do Movimento Passe Livre mostram a necessidade de um debate sobre a função social das cidades. Embora tenham ocorrido melhorias na renda de boa parte da população, com mais pessoas tendo acesso a bens - automóveis e eletrônicos - e ao crédito para compra da casa própria, há, ao mesmo tempo, uma piora das condições espaciais e de mobilidade.
Acompanhe entrevista com a professora concedida a Valor:
Valor: Os protestos jogam luz à discussão sobre como estão estruturadas as cidades?
Maria Encarnação: Acho que esse movimento fez emergir na sociedade essa carência de um debate muito maior sobre quais são as lógicas que orientam a produção do espaço urbano e como elas vêm se aprofundando no período atual. São lógicas cada vez mais comandadas pela dimensão econômica e cada vez menos preocupadas com a dimensão social que a cidade precisa e deve exercer.
Valor: Como isso se evidencia?
Encarnação: A evidência mais forte do aprofundamento do papel econômico da cidade em detrimento ao seu papel social é a contradição que vivemos hoje. Estamos em um período em que a economia do país vai bem, há efetiva melhoria do poder aquisitivo das pessoas, do emprego, e há ampliação do crédito para casa própria. São fatores positivos para inclusão de segmentos da população que estavam fora das possibilidades de participar do mercado 20 anos atrás. Mas essa mesma lógica torna a cidade tão mais cara que há melhorias econômicas da maior parte das famílias, mas ela vem acompanhada de um piora das suas condições espaciais. Ou seja, eventualmente, podem até ter acesso a uma moradia, mas essa moradia está mais distante do centro. E ela pode significar outros custos em função disso. As periferias das cidades, em alguns casos, estão se afastando espacialmente ainda mais do centro.
Valor: Esses protestos dizem respeito ao direito à cidade?
Encarnação: As pessoas têm, em tese, direito à cidade pela legislação, mas esse direito depende de condições efetivas no cotidiano de se ter acesso a ela. Esse acesso, em grande parte, está dificultado pelas condições de mobilidade. Não que as pessoas cheguem a ter consciência de que não têm acesso à cidade e farão um protesto por causa disso. Hoje, no entanto, o movimento não é mais só sobre o transporte. Ele acontece em cidades em que não há aumento da tarifa ou onde o problema do transporte não ocupa a questão central. A partir dele emergiu essa série de manifestações. E isso acontece pela contradição entre situação econômica positiva e situação espacial negativa.
Valor: A senhora costuma utilizar o termo "fragmentação urbana"...
Encarnação: A fragmentação é quando não há mais espaços de uso de todas as classes sociais numa cidade. Claro que isso sempre é exagerado, porque há circunstâncias em que diferentes classes se unem num espaço público. Mas hoje há uma diminuição das possibilidades desse encontro. E isso é ruim porque significa que a cidade de quem anda de automóvel é uma e a cidade de quem anda de transporte coletivo, outra. Existem várias cidades.
Valor: O sistema de transporte é reflexo desse "modelo"?
Encarnação: Ele é duas coisas: reflexo e condição. O transporte coletivo ainda funciona segundo uma lógica do tipo centro-periferia, em que a articulação do sistema se dá no centro principal da cidade. Em uma metrópole como São Paulo, o sistema é em grande parte radial. O ônibus sai do bairro para o centro ou ele sai de bairro para outro bairro, passando pelo centro. Enquanto a cidade é multicêntrica: há muitos centros. Uma Avenida Paulista é um centro; um shopping center é um centro. Enfim, há muitas áreas de concentração de atividades. O carro vai aonde se quer, mas o transporte público não. Quem usa o coletivo está refém do desenho do sistema e depende do centro, porque é até lá que os ônibus vão. Mas para quem está de carro, é possível fazer escolhas com maior liberdade. Então, é uma cidade que separa.
Valor: Como avaliar o que está por vir?
Encarnação: Como a sociedade está se organizando de forma muito diferente, como não é mais o sindicato ou o partido político que conduzem o processo de organização social, é muito mais difícil também compreender como ele vai transcorrer. Ele é menos hierarquizado, menos sistematizado. E assim como se organiza rápido pode se desorganizar rapidamente. Não sei se cabe dizer "de direita ou de esquerda", mas mostra que é uma organização diferente e por isso é mais difícil dizer o que vai acontecer.

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