quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Aboios e lamentos

CRÔNICAS DO PC
Naquela cidade pequena, muito bonitinha, no bairro Alto do Rosário, ouviam-se todos os dias, ao chegar o lusco-fusco, o aboiar prolongado de Zacaria Cana Verde, que chumbrega, cheio da bicha, abria a goela soltando a voz, aboiando, chamando a atenção para seu canto nostálgico revelando sofrimento. Em todo entardecer assim agia, recordando o passado e o destino cruel, que lhe pintou a vida com as mais negras telas.

Cearense da gema, Zacaria foi morar em outras terras, tangido pela seca, uma época em que a fome judiava de gente, quase igual a outras gentes que não sentiam fome. Fora um período duro, sem outra solução, os retirantes se acabando, andando de um lugar e outro sem encontrar um canto para se agasalhar.

Até que para começar teve sorte. De tanto virar o mundo, um dia encontrou serviço e rancho na fazenda de um próspero criador de gado. Soube aproveitar a chance. Trabalhava certinho, cumprindo sem falhas as determinações do patrão. Começou a melhorar de vida, sobrando um pouco do que ganhava, servindo para economizar, pensando no futuro.

Pouco tempo depois, conheceu Chiquinha, cabrocha sapeca, beleza pura, que num salão de forró flertou com ele e logo formou par, dançando a noite toda, até o dia amanhecer. Foi só o começo. Um gostou do outro, iniciando um namoro sério. Encontravam-se todos os dias e começaram a fazerem planos. Não demorou: seis meses depois estavam casados, aproveitando a desobriga do vigário, que por aquelas bandas passou para celebrar missa.

Foi bom demais. O patrão gostava dele por ser leal trabalhador e um vaqueiro destemido, o melhor da região. Vestido de couro, gibão, perneira e chapéu, um veloz cavalo campeiro, não respeitava mata e nem boi brabo. Metia os peitos de taboqueira à dentro, seguindo rastros, até dar de cara com o animal procurado. Dava aquele grito de desafio e acontecia aquela correria louca, onde cavalo e rês embrenhavam-se na catinga, fazenda rastro de destruição por onde passavam.

Um vaqueiro bom igual a Zacaria era sempre o vencedor, dominando o animal, derribando-o pelo rabo, botando careta e canga, conduzindo-o tocado até o curral.

Não demorou muito tempo e o vaqueiro destemido ficou conhecido na região, respeitado como o melhor em seu trabalho. Ele amava Chiquinha, sua mulher. Vivia para ela, dedicando-lhe o maior carinho.

Na vida acontecem fatos, às vezes, sem explicações. A gente vive pensando se está seguro, seguindo os caminhos traçados sem nunca esperar contrariedades. Assim não aconteceu com nosso herói vaqueiro. O seu destino fora marcado para sofrer reveze.

Um dia, muito surpreso, sentiu o sabor amargo da traição. Sem nunca esperar flagrou um homem rodeando seu terreiro. Descobriu que sua querida Chiquinha, que tanto amava, não lhe era séria, traindo-lhe vergonhosamente. Nunca esperou tal acontecer. E perguntava-se: por quê?

Desorientado, não acertou mais com o que fazer. De cabeça baixa, envergonhado, se afastou do lugar onde morava, procurando novos rumos a seguir. Não foi forte o suficiente capaz de suportar a dor, e entregou-se à bebedeira, transformando-se num alcoólatra.

Vivia diariamente embriagado, perambulando pelas ruas, improvisando modas nos seus prolongados aboios, que ele mesmo criava: “Sou do nó, sou da laçada, sou de todas as arrancadas, sou da alavanca do rifle, sou do golpe da espada”. “Alecrim de beira d’água, não se corta de machado, se usa o canivete, do bolso do namorado”.

Assim viveu por muitos anos, se acabando na pinga, dependente, fígado cirroso e acometido de delirium tremens, sem nunca esquecer Chiquinha. Um dia começou a aboiar como sempre, embolando versos rogados de sua autoria:

“Muié traideira / Tem dó de eu / Que eu já fui vítima / Do amor teu”.

Soltou um aboio agudo, pôs as mãos nos peitos e caiu para nunca mais se levantar. Morreu de tanto sofrer e beber.

Pedro Cláudio M.Reis (PC) / E-mail: pcmourareis@yahoo.com.br

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